sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Pinheiro iluminado




"(...) De facto, seguindo esses rastos, depressa chegou à pequena aldeia dos lenhadores. Todas as portas se abriram, e os homens da floresta reconheceram o Cavaleiro que rodearam com grandes saudações.
Este penetrou na cabana maior e sentou-se ao pé do lume enquanto os moradores lhe serviram pão com mel e leite quente.
— Já pensávamos que não voltasses mais — disse um velho de grandes barbas —.
— Demorei mais do que queria — respondeu o peregrino
— Mas graças a Deus cheguei a tempo. Hoje antes da meia-noite estarei em minha casa.
— É tarde — disse o velho — o dia já escureceu, vai nevar e de noite não poderás caminhar.
— Nasci na floresta — respondeu o peregrino — conheço bem todos os seus atalhos. Seguindo ao longo do rio não me posso perder.
— A floresta é grande e na escuridão ninguém a conhece. Fica connosco e dorme esta noite na minha cabana. Amanhã, ao romper do dia, seguirás o teu caminho.
— Não posso — tornou o Cavaleiro —, prometi que estaria hoje em minha casa.
— A floresta está cheia de lobos esfomeados. Que farás tu se uma matilha te assaltar?
Mas o Cavaleiro sorriu e respondeu:
— Não sabes que na noite de Natal as feras não atacam o homem?
E tendo dito isto levantou-se, despediu-se dos lenhadores, montou a cavalo e seguiu o seu caminho.
Dirigiu-se para a esquerda procurando o curso gelado do rio. Mas mal se afastou um pouco da aldeia a neve começou a cair tão espessa e cerrada que o Cavaleiro mal via.
— Depressa — pensava ele —, tenho de chegar depressa ao pé do rio. E puxando mais o capuz para a testa continuou a avançar.
Mas o rio não aparecia, e a noite começou a avançar.
O homem parou e escutou.
— Era mais prudente voltar para trás — pensou ele —.Mas se eu não chegar hoje, a minha mulher, os meus filhos e os meus criados pensarão que morri ou me perdi nas terras estrangeiras. Passarão um Natal de tristeza e aflição. E preciso que eu chegue hoje.
E continuou para a frente.
Agora nenhum ramo estalava e não se ouvia o menor rumor. Os esquilos, as raposas e os veados já estavam recolhidos nas suas tocas. O cair da neve parecia multiplicar o silêncio.
E o rio parecia ter-se sumido.
— Talvez me tenha enganado no caminho — pensou o Cavaleiro —, vou mudar de direcção.
E virou um pouco mais para a esquerda. Mas continuou a escurecer, a neve continuou a cair, o silêncio continuou a crescer e o homem e o rio não se encontravam.
E devagar anoiteceu mais.
As horas uma por uma foram passando e longamente o Cavaleiro avançou perdido na escuridão.
Por mais que se enrolasse no seu capote, o ar arrefecia-o até aos ossos e as suas mãos começavam a gelar. Já não sabia há quanto tempo caminhava, e a floresta era como um labirinto sem fim onde os caminhos andavam à roda e se cruzavam e desapareciam.
— Estou perdido — murmurou ele baixinho —. Então a treva encheu-se de pequenos pontos brilhantes, avermelhados e vivos.
Eram os olhos dos lobos.
O Cavaleiro ouvia-os moverem-se em leves passos sobre a neve, sentia a sua respiração ardente e ansiosa, adivinhava o branco cruel dos seus dentes agudos.
Em voz alta disse:
— Hoje é noite de trégua, noite de Natal.
E ao som destas palavras os olhos recuaram e desapareceram.
Mais adiante ouviu-se o ronco dum urso. O Cavaleiro estacou a sua montada e a fera aproximou-se. Vinha de pé e pousou as patas da frente no pescoço do cavalo.
O homem ouviu-o respirar, sentiu o seu pêlo tocar-lhe a mão e viu a um palmo de si o brilho dos pequenos olhos ferozes.
E em voz alta disse:
— Hoje é noite de trégua, noite de Natal.
Então o bicho recuou pesadamente e grunhindo desapareceu.
E o Cavaleiro entre silêncio e treva continuou a  caminhar para a frente.
Caminhava ao acaso, levado por pura esperança, pois nada via e nada ouvia. As ramagens roçavam-lhe a cara e caminhava sem norte e sem oriente. O cavalo enterrava-se na neve e avançava muito devagar. Até que de repente parou. O homem tocou-o com as esporas mas ele continuou imóvel e hirto.
— Vou morrer esta noite — pensou o Cavaleiro —.Então lembrou-se da grande noite azul de Jerusalém toda bordada de constelações. E lembrou-se de Baltasar, Gaspar e Melchior, que tinham lido no céu o seu caminho. O céu aqui era escuro, velado, pesado de silêncio. Nele não se ouvia nenhuma voz nem se via nenhum sinal. Mas foi em frente desse céu fechado e mudo que o Cavaleiro rezou.
Rezou a oração dos Anjos, o grande grito de alegria, de confiança e de aliança que numa noite antiquíssima tinha atravessado o céu transparente da Judeia. As palavras ergueram-se uma por uma no puro silêncio da neve:
— Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Então na massa escura dos arvoredos começou ao longe a crescer uma pequena claridade.
— Deus seja bendito — murmurou o Cavaleiro —. Deve ser uma fogueira. Deve ser algum lenhador perdido como eu que acendeu uma fogueira. A minha reza foi ouvida. Junto dum lume e ao lado de outro homem poderei esperar pelo nascer do dia.
O cavalo relinchou. Também ele tinha visto a luz. E reunindo as suas forças, o homem e o animal recomeçaram a avançar.
A luz continuava a crescer e à medida que crescia, subindo do chão para o céu, ia tomando a forma dum cone.
Era um grande triângulo radioso cujo cimo subia mais alto do que todas as árvores.
Agora toda a floresta se iluminava. Os gelos brilhavam, a neve mostrava a sua brancura, o ar estava cheio de reflexos multicolores, grandes raios de luz passavam entre os troncos e as ramagens.
— Que maravilhosa fogueira — pensou o Cavaleiro —. Nunca vi fogueira tão bela.
Mas quando chegou em frente da claridade viu que não era uma fogueira. Pois era ali a clareira de bétulas onde ficava a sua casa. E ao lado da casa, o grande abeto escuro, a maior árvore da floresta, estava coberta de luzes.
Porque os anjos do Natal a tinham enfeitado com dezenas de pequeninas estrelas para guiar o Cavaleiro.

Esta história, levada de boca em boca, correu os países do Norte. E é por isso que na noite de Natal se iluminam os pinheiros. (...)"

(O Cavaleiro da DinamarcaSophia de Mello Breyner)




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